Conteúdos sobre Igualdade de Género e Sexualidade colocam dois tipos de problemas: o desajuste de alguns conteúdos às idades das crianças e as entidades que intervêm nas escolas e desenvolvem estes conteúdos diretamente com os alunos.
No início deste ano letivo a polémica sobre a componente curricular Cidadania e Desenvolvimento (CD), invadiu o espaço público, agitando e despertando várias discussões que estavam ainda por ter. De facto, é um assunto que necessita de atenção e de uma reflexão calma.
Ao longo dos anos em que tenho colaborado com as escolas, através da Educação para a Saúde e da formação de professores, tenho tido a possibilidade de conhecer escolas de quase todo o país. Em todas encontro professores motivados, competentes e preocupados. Confesso que, entre todas as qualidades que reconheço nos professores e funcionários das escolas, a que mais tenho apreciado é a paciência demonstrada na gestão das diversas formas irreverentes, próprias da idade, com que os alunos os testam diariamente. Isto só para dizer que o conflito com os pais que se tem vindo a debater não é dirigido à escola, nem aos professores e funcionários, mas sim aos conteúdos de uma componente curricular.
O que percebi da discussão sobre a componente curricular Cidadania e Desenvolvimento foi a preocupação demonstrada por alguns pais e professores pela forma como são desenvolvidos os temas da Igualdade de Género do grupo 1 e da Sexualidade do grupo 2 (https://cidadania.dge.mec.pt/dominios).
Isto só para dizer que o conflito com os pais que se tem vindo a debater não é dirigido à escola, nem aos professores e funcionários, mas sim aos conteúdos de uma componente curricular.
Na verdade, partilho da preocupação que, ao longo dos últimos anos, pais, educadores e professores têm demonstrado sobre esta componente curricular. Baseada na reflexão que tenho feito, considero que os conteúdos sobre Igualdade de Género e Sexualidade e a forma como são desenvolvidos, colocam dois tipos de problemas. Um prende-se com o desajuste de alguns conteúdos às idades dos alunos e ao ano de escolaridade que frequentam e aos materiais sugeridos para utilização na apresentação destas temáticas; o outro com as entidades que intervêm nas escolas e que desenvolvem estes conteúdos diretamente com os alunos.
Comecemos pelo primeiro problema: conteúdos desajustados ao grupo etário.
Quando nos debruçamos sobre os Referenciais da Cidadania e Desenvolvimento e sobre o Referencial de Educação para a Saúde, no planeamento desta componente curricular verificamos que a Educação Pré-escolar faz parte dos grupos alvo, com o tema dos AFETOS e EDUCAÇÃO PARA A SEXUALIDADE (pag.75-83), com o subtema Identidade e Género, o subtema 2 Relações Afetivas, subtema 3 Valores e o subtema 4 Desenvolvimento da Sexualidade.
Sabemos e reconhecemos a importância destes temas e a necessidade de serem discutidos em meio escolar, mas o facto é que a Lei nº60/2009 de 6 de agosto, que estabelece o regime de aplicação da educação sexual em meio escolar, e a Portaria n.º 196-A/2010 de 9 de abril que a regulamenta é clara quando refere que estas abordagens só se fazem a partir do 1.ºciclo.
Concordamos com esta decisão, amplamente discutida na preparação da lei anteriormente referida, pois a criança deve adquirir a compreensão dos afetos e da sexualidade, em primeira instância na família, para depois o fazer com professores e colegas. Daí a idade preconizada serem os 6 anos, a que corresponde ao 1.ºano do 1.ºciclo de ensino básico (CEB).
O mesmo se passa com conteúdos que fazem parte de temas do 1.º, 2.ºciclo e 3.ºciclo e que não têm indicação para aí serem desenvolvidos. Por exemplo, no 2.ºciclo, com idades compreendidas entre 10 e 12 anos, fazem parte dos objetivos a atingir: identificação das doenças de transmissão sexual e formas de prevenção primária e secundária, identificar os diferentes contracetivos, distinguir a interrupção voluntária da gravidez da interrupção involuntária da gravidez, identificar situações de violação dos direitos sexuais e reprodutivos, nomeadamente a violência no namoro, assédio e abusos sexuais e a mutilação genital feminina (esta discussão dos conteúdos, exposta duma forma mais completa na proposta de alteração ao Referencial apresentada pela Associação Crescer Livre, pode ser consultada em https://crescerlivre.pt/blog/).
Existe também uma fonte de preocupação relacionada com os materiais sugeridos para apoio destas temáticas na componente da Cidadania e Desenvolvimento, o que nos leva a afirmar que não são só os conteúdos que se encontram desajustados. Ressalvo que estou a referir-me unicamente às temáticas da Igualdade de Género e Sexualidade, que são uma pequena parte desta componente curricular, mas que reconhecemos importante na estruturação da pessoa.
Toda a pessoa necessita do seu tempo para se construir e desenvolver, todo o ser humano necessita de tempo para se humanizar, daí que o respeito pelo tempo de cada um seja inquestionável nos processos educativos. A escola não se deve antecipar aos pais e educadores em questões relacionadas com princípios e valores pessoais e familiares, conceitos sobre a Pessoa e a Família, conceitos sobre sexualidade não integradores, opiniões ideológicas sobre filosofias de vida e religião. Não só não se deve antecipar como tem o dever de informar sobre as estratégias utilizadas e requerer autorização dos pais para sessões letivas, ações e atividades externas que tenham conteúdos diretamente ligados com os princípios acima referidos.
Existe também uma fonte de preocupação relacionada com os materiais sugeridos para apoio destas temáticas na componente da Cidadania e Desenvolvimento, o que nos leva a afirmar que não são só os conteúdos que se encontram desajustados.
Por último, o segundo problema: entidades que intervém nas escolas
Todas as escolas públicas e agrupamentos têm intervenções externas ao longo do ano letivo, dirigidas a alunos, professores, funcionários, pais e educadores (podemos verificá-lo nos relatórios anuais apresentados pelas escolas). Embora do maior interesse, por vezes, são estas intervenções externas que colocam questões sérias aos professores, pais e educadores.
Pretende-se uma escola aberta em que toda a comunidade seja vista como um contributo educativo, estando prevista a intervenção nas escolas de vários agentes externos, como autarquias e seus órgãos, Forças de Segurança Pública, serviços públicos, instituições de ensino superior, centros e unidades de investigação, ONG’s, empresas do setor público e privado, diversas associações e grupos de cidadãos organizados, meios de comunicação social, entre outros. A escola tem autonomia para organizar outras intervenções que considerar serem de interesse pedagógico.
A área da Educação para a Saúde (ES) nas escolas públicas tem um departamento próprio, em que a responsabilidade da coordenação está entregue a um professor por agrupamento de escola (PES). Este departamento elabora um programa que deverá ser ajustado à realidade sociocultural de cada escola. As linhas orientadoras são da responsabilidade do Ministério da Educação e do Ministério da Saúde, que nesta área trabalham em parceria desde sempre, ou seja, desde que foi criada a Saúde Escolar. O Ministério da Saúde dispõe de Unidades de Cuidados à Comunidade (UCC) com enfermeiras alocadas à saúde escolar. O parque escolar está dividido por UCC e, no início de cada ano, as responsáveis da saúde escolar e a professora coordenadora do PES reúnem-se para planearem as intervenções a desenvolver no agrupamento.
As escolas públicas são um local incontornável de experiências pedagógicas para estudantes do ensino superior e uma fonte de dados para as investigações com trabalho de campo. Na verdade, temos inúmeras escolas integradas nas redes de projetos de investigação em todo o país e muitas escolas com momentos de estágios de estudantes pertencentes a faculdades e institutos de ensino superior.
Tudo é necessário e positivo desde que pais e educadores tenham conhecimento, no início de cada ano letivo, em reunião com a escola, de quais as atividades programadas e possam discutir com os vários responsáveis dos estágios, das investigações, das associações e ONG’s que pretendem intervir na escola.
A escola não se deve antecipar aos pais e educadores em questões relacionadas com princípios e valores pessoais e familiares, conceitos sobre a Pessoa e a Família, conceitos sobre sexualidade não integradores, opiniões ideológicas sobre filosofias de vida e religião.
Tudo são contributos úteis para a educação, desde que seja respeitado o direito dos pais e educadores de colocarem objeções, proporem alterações que considerem necessárias para a aprovação dessas intervenções, ou possam não consentir e mesmo rejeitar o que considerem ser invasivo ou não ajustado aos seus filhos. As polémicas e os confrontos que, por vezes, se passam entre pais e professores advêm, na grande maioria das vezes, da falta de comunicação, informação e diálogo sobre o que está programado para as turmas dos seus filhos e educandos.
Por outro lado, sabemos que as associações e organizações têm missões e objetivos muito próprios e algumas são ativistas de causas que nem sempre são consensuais para pais e professores. Outras vezes, as estratégias utilizadas não são apropriadas para os grupos a que se dirigem, por falta de conhecimento e de preparação para intervir nesses grupos etários. Muitas intervenções são réplicas de modelos e materiais apresentados pelas organizações internacionais que trabalham na temática ou nas quais estão sediadas e cujos materiais e estratégias não se adequam à nossa realidade ( podemos verificar a presença da associações nas escolas públicas através dos relatórios das escolas e das próprias associações).
Em relação aos temas de sexualidade e de igualdade de género a lei sobre educação sexual e a sua regulamentação contemplam a possibilidade dos pais e educadores serem participantes através do consentimento dado, exatamente por reconhecer que são intervenções que tocam princípios estruturantes dum quadro ético.
Existem muitas entidades externas a intervir nas escolas e, como professores, pais e educadores, temos que conhecer bem os seus objetivos, valores e missão. Quais as competências que têm para intervir duma forma assertiva junto grupo etário com quem vão trabalhar. Professores, pais e educadores têm que conhecer os conteúdos, as estratégias e os instrumentos que vão ser utilizados, para não serem confrontados, no momento da intervenção, com conteúdos e estratégias desapropriadas e provocadores de perturbação do ambiente educativo.
Cada criança, adolescente e jovem tem um valor imensurável e não pode ser alvo de negligência, agressão e manipulação, mesmo quando feitas com as melhores intenções, para responder a indicadores de avaliação muito válidos para a saúde, educação, economia e política. Em Educação, os erros cometidos só são reparados ou evitados nas gerações futuras, nos próximos grupos, não são reparados no próprio, esse já não está lá e as marcas ficam para sempre. Até aos 20 anos, somos seres em construção, depois seremos, até ao fim do ciclo de vida, seres em desenvolvimento. E isso coloca pais, educadores e professores num lugar de responsabilidade insubstituível perante os trajetos da humanidade.
Teresa Tomé Ribeiro,
Direção da Crescer Livre
geral@crescerlivre.pt
Artigo originalmente publicado no site Ponto SJ (link)